Causos do Mestre Paragua - sempre bom de ler: "Adeus às armas"

quinta-feira, 28 de abril de 2011

ADEUS ÀS ARMAS
Paraguassú Éleres     

       Recorro ao romance de Hemingwai (1898-1961) para falar dos imediatos efeitos da Lei 10.826, de dezembro de 2003 (Estatuto do Desarmamento) cujo prazo entrou em vigor com a Medida Provisória 174, de março de 2004.
Houve plena aceitação pública e a mídia noticia diariamente a ida de pessoas à Polícia Federal para devolver armas de todos os tipos. Muitas engavetadas e cada uma guardando sua estória. As que entreguei têm as suas.
A 1a é do final do séc. XIX e foi usada pelo exército do Brasil (fuzil modelo 1908) tendo sido reformada para arma de caça em Itajubá (MG), mudando o cano raiado para munição 36 (três cartuchos) e projétil 44. É comum vê-la em documentários da guerra civil espanhola (1936-39).
A 2a e a 3a, metade do séc. XIX, são os famosos Winchester 44 “papo amarelo”. Pupilos do general Custer bem podem tê-las usado contra peles-vermelha, crentes de que “índio bom é índio morto” frase “i(morta)lizada” pelo general americano Phil Sheridan.
A 4a é uma carabina Chapina 32/20, brasileira (1971). Um dia, sem nada para fazer num acampamento, demarcando castanhal no rio Vermelho (Marabá) esculpi em mogno, com meu canivete, uma empunhadura e uma cabeça de águia na coronha... Pintada em laca negra e partes em aço niquelado, parecia um totem. Em 1972 um major do serviço secreto do exército que ficara meses na minha “cola”, caçando o rumo do meu pé esquerdo, e que depois virou companheiro de papo, disse a Cecília, minha mulher, para não usá-la mais : de longe, no mato, na visão dos milicos eu pareceria um guerrilheiro (e isso lá no Araguaia, onde demarcava terras à época) e para os guerrilheiros do PC, eu pareceria um milico. Segui o conselho, mas antes passei o maior susto no dia em que ia fazer um sobrevôo no Xingu. Acompanhava-me o agrônomo Campos, da SAGRI. O acesso para Val-de-Cans estava coalhado de soldados e não passavam veículos. Contornamos a Pedro Álvares Cabral, também cheia de soldados. Eis que de repente (“não mais que de repente”, como disse o poeta), rasante, um helicóptero sobrevoa a Maracangalha (atual Júlio César) e nele vi o general João Figueiredo, as mãos postas numa metralhadora ponto 50 (à moda general Mac Arthur) e atrás, em carreata oficial, com batedores de motocicletas, o general-Presidente Emílio Garrastazu Médice em visita a Belém. E nós ali, temendo que um soldado abrisse o porta-malas e encontrasse, acondicionada num estojo de madeira, forrado de curvim, aquela “terrível” arma, no exato momento em que a menos de 30 metros passava o magano da ditadura militar no Brasil... Até provar que não tinha intenção de “Kenedizar” o general Médice e eu teria levado muita porrada...
A 5a e a 6a são revólveres. Um Taurus 38 duplo comprado em Boa Vista (RR, 1962) quando, topógrafo do Ministério da Aeronáutica, demarcava a pista na margem do Uraricoera, próxima à aldeia Waicá  (hoje chamados Yanomami). Com porte federal (Roraima era Território Federal do Rio Branco), sempre foi legalizado. Certa feita, na rodovia Tucuruí-Cametá, um PM conferiu o documento mas reteve a munição, que “deveria estar guardada fora da arma...”. Era 1996, época do incidente Eldorado do Carajás, e eu usei da minha condição de diretor técnico do ITERPA e acionei a mente. Isto é, disse uma mentira : “tudo bem, mas quero um recibo, porque estas balas me foram dadas pelo Secretário de Segurança”.  “Ah, sim. Pode ir, doutor”.
O outro é um surrado Smith & Wesson 38 duplo, e nos 30 anos que o tive nunca dei um tiro.
A 7a é uma garrucha 22, cano duplo, velha e enferrujada. Colega do CESEP convenceu-me a comprá-la, “para minha segurança”...
A 8a e última arma do “adeus” é o modelo usado na cena da escaramuça no campo cigano, no filme “007 contra Moscou”. Para proteger James Bond, o agente do “Spektro” alveja o agente russo. É uma pistola “Parabellum”, 9 mm, alemã, final do séc. XIX, alça de mira para mil metros e o coldre de madeira transmuda em coronha. Certa feita (anos 50) o deputado Cléo Bernardo cobriu-se com a bandeira do Brasil e saiu em passeata pela Presidente Vargas para chegar à estátua da praça da República. O comandante da PM encarregado da repressão era um coronel (Raposo, parece) que sacou o “parabellum” e atirou p´ro alto. Desavisado da cena, o cavalo saltou de lado e o cavaleiro foi ao chão. A plebe vibrou em vaia, mas Cléo não chegou a estátua. A cavalaria da PM baixou o pau, um canhão d´água da FAB desfez a estudantada e eu estreei a vida na mini-subversão...
Voltando às armas: arrumei-as enfileiradas, expostas no chão de ladrilhos brancos, fotografei a coleção, chamei os agentes federais e as entreguei. Meu tempo de mudar o rumo da sociedade pela mira de um fuzil cessou no dia em que perdi o navio que levaria a mim e mais 4 companheiros, de Belém a Cancun (México), de onde iríamos à Sierra Maestra, para lutar ao lado de Fidel Castro e Che Guevara. No vigor dos meus 19 anos fora fisgado por um mago da palavra, com quem reforcei minhas noções de independência política. Mas no Ano Novo de 1958 (sem esperar que eu chegasse), Fidel tomou Havana... Anos depois, em Oriximiná, após o golpe de 64, um político local espalhou que eu ali estava para instalar um foco guerrilheiro na Serra do Tumucumaque. Que eu subiria o Trombetas enquanto Benedicto Monteiro, saindo da nossa Alenquer, subiria o Curuá... Mas agora que entreguei as armas, Che assassinou-se na Bolívia, Castro não mais fuma charutos e Bené está na Academia - agora mesmo é que não vou à guerra. The end. Adeus às armas.

(O Liberal, 2006)

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